sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

EU VESTIA NELA A MINHA CAMISA FAVORITA

Choviam margaridas nos dias quentes, o sol tostando a melancolia com lambidas laranjas. Às vezes escutávamos os mandarins fornicando violentamente enquanto brigávamos pelo companheirismo de Rimbaud – o a sempre teve cor branca, dizia eu, aquele cigarro semiapagado pendulando-se em lábios ébrios. Ela me olhava sem olhos e eu me arrepiava quando pensava no que ela seria capaz de fazer com uma boca. Sem razão nenhuma a nuvem negra que pairava sobre a banalidade se escondia em nosso quarto, e eu me via tocando Chopin num tecladinho de bambu: bambo, sambo, lambo. É assim que se chega a um orgasmo, dizia eu com as mãos atadas de culpa – era sempre ligeiro demais. Mas as coisas mudavam mesmo quando eu defendia aquela tese de que Oswald era picariano simsenhor e que o pré era apenas um prefixo que os ignorantes colocavam na cabeça dos apressadinhos: como eu. Deixa eu chorar, reclamava, quebrei a porcelana chinesa de mamãe, e não adianta de nada eu escutar aquele disco do Cid Moreira narrando a Obra Completa de Freud; isso também é literatura. E enquanto as pétalas decoravam nosso carpete com seu realidade mal-disfarçada eu argumentava que hermenêutica era quando se fumava uma baseado e finalmente se conseguia entender o movimento estranho que fazem os contrabaixistas conduzindo um bebop verdadeiramente negão. Mas ela, do alto de sua superioridade plática, se negava a responder, pois como dizia Saussure, manequins costumam ser teimosos no que se refere a parole.

Pedro Gabriel Ferreira
Garanhuns, janeiro de 89

3 comentários:

  1. "hermenêutica era quando se fumava uma baseado e finalmente se conseguia entender o movimento estranho que fazem os contrabaixistas conduzindo um bebop verdadeiramente negão"

    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    muito bom!!!!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Picarianismo: chutar o pau da barraca da burocracia, cuspir nos valores e padõres, pisotear as formas fixas e, acima de tudo, exaltar a inteligência e o lirismo. A beleza do ritmo acelerado, como "um bebop verdadeiramente negão", do insight epifânico, da sinceridade desmedida, e do próprio feitichismo declarado, são garantias da maestria do texto de Ferreira. Como não se apaixonar pelo fazedor de poesia de Garanhunhense? Somente com muita insensibilidade e desconhecimento do que são as verdadeiras arte e humanidade.

    Dedé Schinneider

    ResponderExcluir